Capítulos Iniciais
A Casa no Fim da Rua – 3ª edição
Prelúdio: Alguns anos atrás
A chuva de meteoritos já havia sido divulgada pela maior agência espacial do mundo, mas apesar da previsão da queda de corpos celestes em países dos hemisférios sul e norte simultaneamente, a imprensa não pareceu muito interessada em noticiar o fenômeno, o que particularmente agradou aos irmãos.
Eles estudavam juntos materiais extraterrestres há bastante tempo. Desenvolviam pesquisas para uma divisão governamental sobre a utilização dos metais encontrados em qualquer coisa que invadisse a Terra e sobrevivesse ao atrito com a atmosfera.
Tinham para si que se os portais de notícia e as redes de TV ficassem fora disso, tanto melhor, mais fácil seria o trabalho longe dos curiosos e das incansáveis perguntas dos repórteres.
De frente a um mapa-múndi, que ocupava toda uma parede do laboratório, ambos rabiscavam anotações em seus cadernos e faziam cálculos nos computadores à disposição, trocando informações a todo instante sobre a maior probabilidade de onde haveria contato dos meteoritos com o solo.
– Estamos com sorte – disse um deles – se nada mudar, o norte do país será a região mais atingida.
– Parece que agora em definitivo. Não houve alterações na trajetória nas últimas 24 horas. As equipes de lá estão sob comando de quem? – quis saber o outro.
– Yuri – respondeu, depois de consultar uma pasta.
– Melhor você ir substituí-lo, precisamos de alguém experiente para esse tipo de situação.
– Concordo. Você ficará aqui ou irá comigo?
A resposta não veio imediatamente. O homem ajustou os óculos ao nariz e traçou um risco em forma de parábola com uma caneta sobre a parte de baixo do mapa. Afastou-se um pouco e segurou o queixo com uma das mãos. Balbuciou algo, fez ainda alguns movimentos com o dedo no ar e olhou para o irmão:
– Eu vou para a América do Sul.
– Tem certeza de que cairá algo lá?
– Absoluta ainda não, mas estou disposto a arriscar.
O irmão balançou a cabeça concordando.
– Vai esperar o nascimento de sua neta, ao menos?
– Sim, não perderia isso por nada.
Ficaram ali ainda mais um momento, olhando para o gigantesco mapa, sem saber que, em poucos anos, o trabalho colaborativo e a relação fraterna entre os dois seriam transformados em uma disputa mortal.
Capítulo 1: Os amigos
– Eu já disse, moleque, essa rua é nossa. Se vai passar por aqui tem que pagar pedágio.
O menino tinha cara de mais velho e as penugens acima da boca e na volta do queixo ajudavam a disfarçar para cima os seus quatorze anos. Não era exatamente um brutamontes, mas era bem mais forte do que Guilherme, além, é claro, de ser vários centímetros mais alto.
– Não vi nenhuma placa avisando. – A provocação era ousada, mas ajudava a disfarçar o nervosismo e ganhar alguns segundos para pensar em algo.
À frente, com os braços cruzados sobre o peito, π. Seu nome era Pierre, mas não gostava, achava que o símbolo matemático dava um ar de mistério. Também era mais curto pra pichar. À direita e à esquerda, completando a jovem gangue, Mauro, um garoto que repetiu o quinto ano duas vezes; e Lucas, que sempre usava um lenço amarrado na cabeça para disfarçar o tamanho das orelhas. Os capangas não metiam medo, já π era uma ameaça à integridade física de Guilherme.
– Não precisa placa nenhuma, não viu meu símbolo pichado na entrada da quadra?
– Imaginei que era o início de algum exercício de geometria.
– Cala essa boca, quatro olho!
π tinha sérios problemas com o uso do plural, além disso, adorava essas frases prontas, toda vez que xingava recorria a um repertório de não mais do que dez expressões e “cala essa boca” certamente era a sua preferida.
– Tá bom, quanto é?
– Pra ti, quinze. Cinco pra cada. Pro refri.
– Não tenho dinheiro, pessoal, sinto muito.
– O que tem na mochila, além dos cadernos? – perguntou Lucas, contribuindo para a extorsão.
– Só as coisas do colégio.
– Deixa eu ver.
O garoto começou a espalhar o material de Guilherme pelo chão. Cadernos, estojo, régua, compasso, o pote vazio das bolachas, alguns gibis.
– E isso aqui? – indagou π, juntando as três edições mais recentes dos Vingadores.
– Ah, isso não vale nada pra vocês, caras, são da minha coleção.
– Não sei por que alguém perde tempo lendo, se tem os filmes – desdenhou Mauro.
– Eu poderia te dar uma centena de motivos, Mauro, mas você não entenderia – disse Guilherme, desanimado.
– “Eu poderia… não entenderia” – π imitou com uma voz esganiçada. – Quem da tua idade fala assim, ô nerd? Passa pra cá esses gibis. Mas vou ser legal contigo dando uma dica: se quiser de volta já sabe: tamo indo vender eles no sebo do Silveira.
– Ah, obrigado pela consideração. – Guilherme quase não conseguiu segurar as lágrimas. Nem era tanto pelos gibis, mas por não ter imaginado nada para livrá-lo daquela situação.
– Da próxima vez traz dinheiro, senão a gente vai tomar tua bike também – avisou Mauro.
– Fica frio aí, garoto.
O sorriso voltou de orelha a orelha no rosto de Guilherme ao escutar aquela voz.
– Não te mete nisso, Dão – alertou π.
– O carinha de óculos aí é meu amigo. Vocês não vão tomar as coisas dele.
– Vamos ver, então. Mauro, Lucas, mostrem pra esse trouxa o que acontece com quem se mete com a gente.
Os dois se olharam em dúvida. Dão era muito maior do que todos os três e infinitamente mais forte. Ninguém no bairro sabia de um garoto que tivesse entrado em uma briga com ele e tivesse durado mais do que alguns segundos.
– Tem certeza de que vocês querem encarar?
π ainda deu um passo à frente, mas repensou. Tinha uma reputação que não gostaria de perder. Não por três gibis que o Silveira pagaria uma mixaria. Virou-se para Guilherme e jogou as três edições de Os Vingadores no chão, junto ao resto do material retirado da mochila.
– A gente ainda vai ter nosso momento, Dão. Cê não perde por esperar.
– Junta mais uns três e talvez vocês durem um minuto, π. Agora sumam daqui.
– A gente ainda te pega, quatro olho. Teu cãozinho nem sempre vai tá por perto. Vamos lá, galera. Ainda tem gente na frente do colégio. Devem ter algum dinheiro e não essas porcarias de gibis.
Guilherme largou a bicicleta e começou a juntar suas coisas, lamentando o estrago feito em umas das capas das HQs.
– Valeu aí, Dão. Mais uma vez você me salvou.
Dão pegou uma das revistas e ficou observando a capa.
– Aqueles babacas! Ei, eu não li essa daqui ainda.
– Eu sei, vou te emprestar quando terminar o arco do Thanos. Escuta, posso te convidar pra almoçar? Pra agradecer.
– Comida de casa ou de restaurante?
– De casa. Da mãe.
– Legal. Depois precisamos dar uma olhada numa coisa. Tem um caminhão encostando na casa do velho Vladimir, acho que tá rolando uma mudança.
– Sério? – A animação tomou conta de Guilherme. – Vamos agora lá ver.
– Negativo. Prometeu almoço de mãe, agora paga.
– Tá bem. Vamos nessa.