
Capítulos Iniciais
Azul
UM
— Outra vez, Matheus?
— Dessa vez eu não tive culpa. Fui forçado...
— Ah, não! Para por aí. Tu pode arrumar a desculpa que quiser, menos essa. Eu não consigo te fazer lavar um prato sujo, imagina que algum colega vai te forçar a alguma coisa.
— Mas foi o que aconteceu, mãe.
— Vai pro teu quarto e não sai de lá até eu conversar com o teu pai. Sem videogame, sem celular, sem TV.
— Posso respirar, pelo menos?
— Vai de uma vez antes que a coisa piore pra ti.
Eu fui.
Deixei o celular na sala e tirei o videogame e a TV da tomada pra não arrumar mais problema e dar um sinal de que eu tô arrependido.
A mãe tá certa, não fui forçado a nada. Tudo podia ter sido resolvido com uma conversa, mas daí veio um xingamento mais pesado, um empurrão e a galera gritando, louca pra ver confusão, então fiz besteira. Quando dei por mim, o Davi tava curvado sobre o próprio corpo, com as duas mãos sujas do sangue que saía do nariz. O professor de Educação Física é o mais casca grossa de todos e não tolera indisciplina, ainda mais por causa de um jogo. Azar meu e do meu colega. Mais meu do que dele, na verdade, pois não é a primeira vez que eu vou pra direção. “Uma semana em casa pra pensar nas minhas atitudes”, disse o diretor.
Daí ele ligou pra minha mãe e ela teve que deixar o trabalho pra me buscar na escola.
Daí ela ficou o caminho inteiro sem dizer uma palavra. Eu também fiquei quieto, sentado no banco do carona só olhando pra frente. Mas deu pra ver que ela tava chorando. Os óculos escuros de grife que ela usa não me impediram de ver.
Detesto fazer minha mãe chorar.
Agora ela vai ter que contar pro meu pai e ele vai dar o maior sermão.
O terceiro este mês.
E olha que hoje é dia 15.
Prazer, meu nome é Matheus.
Super poder: arrumar problema.
Só que, diferente do que tu pode imaginar, não arrumo porque quero. Parece que os problemas me perseguem, que eu atraio eles por alguma razão.
Foi assim nas outras escolas e tá sendo assim agora.
Mas, ao contrário de outras vezes em que eu queria sair e conhecer novas pessoas, dessa vez eu quero ficar. Tenho colegas legais na turma, o próprio Davi é um cara legal e vai me desculpar pelo vacilo.
A questão é que o diretor me deu um ultimato: ou muda o comportamento ou procura outro lugar. “A escola recomenda fortemente uma avaliação psicológica do seu filho”. Ele tava furioso e disse isso na minha frente, quando a mãe chegou pra me pegar. Acho que foi aí que ela sentiu o baque. Deve ter ficado com vergonha de mim, depois deve ter ficado com raiva de ter tido vergonha, por isso chorou.
Ah, que saco. Se eu pudesse descontar nos zumbis pelo menos.
Não. Sem videogame.
Olhei dentro da mochila e procurei por algum tema, mas não tinha nada anotado no caderno. Peguei o livro didático de Matemática, de Ciências, mas não deu vontade de fazer nada com eles também.
O que sobrava era esperar meu pai chegar e ouvir a bronca e o tamanho do castigo.
DOIS
Meu pai não é meu pai de verdade. Ele casou com a minha mãe quando eu ainda era pequeno. Não sei muito sobre o outro, o que era pra ser meu pai mesmo, só sei que era um namorado e que não quis me assumir, daí desapareceu. Acho que dei sorte, porque o Fábio é um cara legal e sempre me tratou como se eu fosse dele e não uma bagagem extra que tinha que carregar pra ficar com a minha mãe.
— Posso entrar? – ele perguntou depois de bater na porta.
— Entra aí.
Ele tava sério. Se aproximou e sentou na cama, do meu lado. Virou o rosto e me encarou por um segundo.
— Desculpa, tá? Eu sei que não fiz a coisa certa – me adiantei.
Ele respirou fundo.
— Onde a gente tá errando, Matheus?
— Não são vocês. Eu que explodo fácil por qualquer coisa.
— A gente vai ter que fazer o que o diretor pediu, filho, tudo bem?
— Eu não sou louco!
— Claro que não é.
— Mas e se acharem algo na minha cabeça?
— Deixa de besteira! Tu vai conversar com um psicólogo, só isso. Não tem nada demais. Eu já fui, tua mãe faz terapia, o que tem de anormal nisso?
Fiz uma careta, mas, na real, eu não tinha como não aceitar. Tava pisando na bola demais, e o Fábio tava sendo muito legal comigo, só conversando sem gritar nem nada, por mais que eu merecesse.
— Quem vai me levar?
— Tanto faz, eu, tua mãe.
— Pode ser tu?
— Tem que ver os horários, mas posso tentar.
Balancei a cabeça, concordando.
— A gente vai jantar em seguida. Toma um banho e vem comer algo.
— Tá bom.
Ele levantou, abriu a porta e, antes de sair, me olhou mais uma vez.
— A gente te ama, filho, procura te lembrar disso.
— Eu sei.
— Mas tu tá de castigo. Até voltar pra escola, teu celular fica comigo e teu videogame vai ficar assim como tá, certo? Desligado.
A porta fechou, e deu uma vontade enorme de chorar. Mordi os lábios e enfiei o travesseiro no rosto. Não pelo castigo. Azar se não puder ter as minhas coisas. O pior de tudo é a sensação de ter decepcionado, mais uma vez, quem me quer bem.