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Contos Iniciais

Canto de palavras e pássaros

Lindalva e o passarinho azul


      “Quando o amor acaba, não sobra nada. Nem capa, nem aba.” 

      Lindalva leu a frase escrita com letras vermelhas no 

para-choque do caminhão de frutas, quando ainda era uma menina. Nunca mais esqueceu. Talvez por isso, ao se fazer moça, deu de colecionar namorados. A tal frase não saía da sua cabeça. O medo de ficar sem nada, também. Deve ter sido por isso que ela não conseguia desfazer-se de seus amores. Nem achava isso certo. Como abandonar um amor? Amor não é coisa que se abandona. Não sai da gente. Nem que a gente queira. Isso nunca, pensava ela. Uma vez amado, amado sempre. Amar é verbo para somar. Nunca para dividir ou diminuir. No máximo, multiplicar, dizia sempre.

      Assim pensando, a moça ia vivendo de muito sentir. Se alguém novo aparecesse na sua frente, e despertasse aquela paixão, Lindalva piscava o olho direito; mirava bem nos olhos da vítima e mordiscava o lábio inferior. Depois, mexia no cabelo. Puxava a longa franja para trás da orelha, deixando à mostra o fino lóbulo decorado por uma pérola. Aí, tal qual uma gata explorando telhado novo, se aproximava. Como num passe de mágica, após dois dedos de prosa e um par de pensamentos maliciosos, lá estava o sujeito, completamente caidinho por seus encantos.

      O problema é que, nessa fase de novidades, os afetos mais antigos ficavam um pouco de lado. Mas nunca abandonados. Ela mantinha todos por perto. Um afago aqui, uma palavra mais picante ali, pequenos encontros furtivos no meio do dia e todos se sentiam queridos. Quando se encontrava com o primeiro, dava uma boa desculpa para o segundo. Ao terceiro, inventava doença na família; para o quarto, indisposição passageira. E assim ia a moça, feliz, preenchendo a agenda do coração. Seu sonho era reunir todos eles em uma grande festa. Mas sabia, em seu íntimo, que isso seria confuso demais. Ninguém, além dela própria, entenderia esse seu jeito de gostar. Muito menos os homens de mentalidade atrasada daquele fim de mundo, concluía.

      Um dia, como era de se esperar em um vilarejo tão pequeno, as artimanhas amorosas da jovem foram parar na boca do povo. Primeiro na sacristia, onde todas as beatas se encontravam a tricotar agasalhos para doação. Depois na farmácia, na padaria e, por fim, no boteco, onde, sem muita demora, chegaram aos ouvidos dos principais interessados.  Foi o maior forrobodó. Teve socos, ameaças e pontapés. Em seguida, porém, os rapazes olharam-se com dó um do outro. Afinal, estavam todos na mesma situação vexatória. Em cortejo, partiram furiosos para a casa de Lindalva.       Esquecidos do tanto de carinho recebido, proferiram em frente à janela todo o tipo de xingamento. Juraram nunca voltar, nem amar mais ninguém. E, abraçados, retornaram ao bar para um trago juntos. Afinal, era o que a ingrata merecia.

      Sozinha, difamada e sem seus amores, a moça passava os dias encerrada entre a casa e o quintal. No meio das árvores, à sombra, com um bom livro, tentava esquecer daqueles mal-agradecidos. No seu íntimo, não se arrependia de nada. Afinal fizera feliz a todos eles. Não merecia aquilo. Mesmo assim, o amor continuava lá. No meio da leitura, entre as páginas, suspirava ao recordar dos beijos, dos abraços e afagos especiais, personalizados, concedidos, entre as cobertas, para cada um dos seus namorados. Agora, estava ali, mais só que uma alma penada. Injustiçada por amar demais. Não podia haver maior absurdo. Naquele instante, um ruído fino interrompeu seus devaneios. Aos seus pés, um pássaro batia com a ponta do bico no tronco da figueira. Era azulado. A cauda longa, tinha penas douradas. Lindalva deixou o livro e passou a observar a ave. Em alguns minutos, começou a mordiscar o lábio inferior. Imaginar-se, pelos céus, a voar sobre travesseiros de nuvens. A cantar, nos galhos de frondosas árvores, no dourado dos fins de tarde.

      O pássaro eriçou a plumagem. Começou a andar de um lado para o outro, com passos miúdos, em frente à moça. Trazia a cabeça ereta e o bico erguido, como se pretendesse conversar.  Ou seduzir. Seus minúsculos olhos, de repente, tornaram-se penetrantes, carregados de um brilho ímpar. Converteram-se em duas pequenas joias escuras, cravejadas de encanto. O instinto de fuga foi substituído pelo desejo de ficar. E ele ficou.  

      Nas redondezas, até hoje, dizem as más línguas que, depois de abandonada por seus namorados, aqueles ingratos, a menina Lindalva enlouquecera. Contam que costumava ser vista cantarolando ao lado de uma ave pelos parques da cidade. Ou a correr, pelos campos, com os braços abertos e seus lenços de seda estendidos como asas. Todos, sem exceção, a julgaram louca. Doida de pedra. O que ninguém desconfiava, muito menos sabia, era o quanto a moça estava feliz por ter encontrado, enfim, o amor de verdade no canto livre de seu passarinho azul.

O baile

      Mariana estende, com cuidado, sobre a velha colcha de crochê, o vestido de seda que acabara de passar. Olha para ele com os olhos de encanto. Nunca, em toda a sua vida, vira uma peça tão linda. A estampa com delicadas flores, que pareciam dançar sobre os babados em torno da gola e das mangas, tinha cores suaves. Lembrava uma antiga tela de museu, pensou. 

      Apressada, ela corre para procurar o colar. Não poderia ser qualquer um. A joia precisava destacar-se no decote, sem comprometer a delicadeza da vestimenta. Pérolas. Sim, pérolas seriam perfeitas. Mas onde estariam? Revira a cômoda. Abre uma gaveta.       Duas. E na terceira, dentro de uma caixa forrada de veludo verde, encontra a gargantilha de contas grandes. Ao lado, dispostos sobre uma aba sobressalente de base acolchoada, os brincos que formariam o conjunto ideal. 

      E os sapatos? Agora faltava escolher o par de sapatos para combinar. Azuis? Não, muito extravagantes. Pretos? Também não. Comuns demais. Vermelhos. Seriam vermelhos. Um contraste bonito com o perolado do colar e a suavidade floreada do tecido. Estava resolvido. Seria o par de scarpins vermelhos, de salto baixo arredondado. Confortáveis e muito macios. Ideais para sustentar os movimentos da dança sem causar dor nos tornozelos.

      A moça acomoda os calçados ao lado da cama. Pronto. Agora, não falta mais nada. Talvez, o retoque com o melhor perfume. Escolhe, entre os muitos frascos, aquele que lhe parece mais bonito. Não tem tempo para sentir os aromas. Isso sempre a deixou confusa. Ou enjoada. A simples aproximação dos vidros abertos, causava-lhe tanta confusão no olfato que, quase sempre, acabava por eleger a pior fragrância. Ou a mais adocicada. As notas misturavam-se. Embaralhavam-se sem que fosse possível qualquer distinção entre elas. Por isso, há muito, passara a escolher os perfumes pela embalagem. 

      Com tudo organizado, ela volta para a sala. Fecha as cortinas. Acende as luzes laterais. Transfere a mesa de centro para o canto da sala e coloca para rodar, na velha vitrola, um disco de Glenn Muller e sua orquestra. Imagina-se a rodopiar nos braços de Alberto. O vestido a voar pelo salão, enquanto algumas mulheres do bairro ficam admiradas e a insuportável Olguinha, tomada de inveja. Ouve os sussurros do seu homem abafarem a música. Sente aqueles braços pesados em torno da sua cintura. As mãos mais atrevidas, que deslizam até o final da coluna e depois retornam para acariciar suas costas. Nesse momento, ela não fica contrariada com seu habitual hálito de cerveja. Ouve só as palavras doces, entre outras mais ousadas, repetidas como vento morno a dois centímetros de sua orelha direita.

      Quando está prestes a beijar o amante, o despertador do celular toca, fazendo-a voltar do delicioso delírio.

      O sinal indica o horário do remédio da tarde. Ela, então, sai apressada em direção à cozinha. Amassa o comprimido branco sobre a colher. Retorna com o medicamento e um copo de água. Atravessa a sala principal. Dirige-se à biblioteca contígua e acorda Dona Eugênia, que cochilava recostada na cadeira de rodas. 

      — Hora de acordar, Dona Eugênia! 

      — Onde estou? 

      — Em casa, vozinha! Está em casa.

      — E quem é você? Por que o Nestor não está aqui? Onde está o Nestor?

      — Eu sou a Mariana. Lembra? Faço companhia para a senhora quando o seu Nestor sai para o trabalho. Aliás, ele deixou aqui esse remédio. Está na hora. Vamos tomar?

Eugênia engole, sem reclamar, o conteúdo da colher e um gole de água. Sempre se fizera obedecer, mas nunca contrariava o marido.

      — Lembra que antes de dormir a senhora me disse que iria ao baile? Escolheu até o vestido. Lembra? Aquele de seda pura com flores cor-de-rosa.

      — E o Nestor, já está pronto para o baile? 

      — Sim, ele foi de terno para o trabalho e vai encontrar com a senhora lá no salão.

      — Mas quem é você mesmo? O que faz aqui?

      — Nós vamos ao baile. Lembra? Encontrar com o seu Nestor. 

      — Ah, sim. Preciso ficar muito bonita. Hoje o Nestor vai me pedir em casamento. Tenho certeza disso. 

      — Fique bem quietinha aí. Eu já volto com suas roupas. 

      Mariana retorna do quarto com o vestido, o par de sapatos e as joias. Veste a patroa. Volta ao quarto para buscar o perfume. Espalha algumas borrifadas pelos cantos da sala de estar. Recoloca o velho disco de Glenn Muller na vitrola e olha para o imenso retrato sobre a lareira. Na pintura a óleo, o falecido desembargador Nestor Bernardo de Albuquerque sorri com o canto da boca, vestindo um lindo terno azul-marinho com botões dourados. Ao passar em frente à tela, a jovem faz uma reverência com a cabeça. Junta as duas mãos, em forma de prece, e ordena.

      — Onde o senhor estiver, seu Nestor, faça o favor de aparecer por aqui. O baile vai começar e a vozinha está a sua espera. E trate também de fazer seu pedido de casamento. Hoje mesmo, viu.

      A cuidadora Mariana segura com firmeza as alças da cadeira de rodas, que dá voltas pela sala. Em pensamento, ela está de novo nos braços de Alberto. Os babados do vestido de Eugênia rodopiam no ritmo da música, enquanto os últimos raios do sol dançam sobre as paredes e fazem brilhar os olhos do desembargador.

      No salão com cheiro de alfazemas, entre sorrisos, uma voz rouca, quase inaudível, sussurra.

      — Aceito, meu amor. Sim! Sim, Nestor!

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