
Capítulos Iniciais
Histórias de casamento
3,2,1
Cristiano Aquino
A casa estava enfeitada, uma piscina imensa cercada por um jardim com um paisagismo de fazer inveja a Burle Marx. Na piscina, balões brancos cobriam toda a superfície da água e destacavam os balões vermelhos com números alusivos ao que estava por vir. Os convidados, com suas taças de espumante, contavam em coro os segundos finais do ano, todos de branco como se fosse algum rito religioso — o que não deixava de ser dada a importância e expectativa que se cria nestas viradas de ciclos. Na mesa, lentilha para dar sorte, nada de galinha que cisca para trás ou qualquer outro alimento que trouxesse mau agouro. O prato principal, um grande leitão enfeitado com frutas e fios de ovos.
De repente os fogos explodiram nos céus e a noite se fez dia, o ano velho e cansado acabara para dar espaço a um novo tempo.
Feliz 2025!!!
Agora estava decretado 2025! O ano e o mês do casamento de Suzana chegaram e finalmente ela iria realizar o maior sonho de sua vida: casar-se com Gustavo.
A data estava marcada com três anos de antecedência, o salão e o menu escolhidos e pagos há mais de ano, canapés chiques, nada de coxinha e risoles ou aquele canudinho de carne moída com ovo, sabe? O jantar seria à francesa, Deus me livre de fila de buffet. Há alguns meses os noivos e seus pais participaram de um jantar promovido pelo chef responsável pela grande noite. Conrado, pai de Gustavo, iniciou reclamando dos molhos agridoces que acompanhariam a carne de caça selecionada para o pato principal; já Grazi, mãe de Suzana, não gostou da carne de javali, muito seca para seu gosto. Gustavo e Suzana se divertiam com tudo o que estava acontecendo e nem perceberam quando o pai da Suzana, Márcio, pegou no sono durante a sobremesa após degustar algumas doses de um Chivas 12 anos. A sobremesa? Petit gâteou com a opção de um licor de cereja para quem não quiser uma espessa camada de chocolate quente sobre o sorvete e o brownie.
Vestido reservado também com bastante antecedência, Suzana escolheu o atelier de costura após diversas visitas a lojas, e não conseguia encontrar algo que realmente a fizesse se encantar até encontrar aquele, com detalhes de renda e madrepérolas, a cauda longa que se arrastaria por metade da nave da igreja e um decote comportado e ousado na medida para a ocasião. Suzana pagou um pouco mais caro pelo aluguel, mas seria o primeiro uso do vestido — algo que ela nunca conseguiria comprovar — e por fim uma dieta rigorosa para não precisar de novos ajustes no bendito com dezenas de botões nas costas.
Suzana estava pronta para casar e passar a compartilhar sua vida, só não sabia se Gustavo tinha o mesmo entusiasmo que ela em relação ao enlace matrimonial.
Ela lembra como se fosse ontem a primeira discussão por causa da escolha dela de realizar a cerimônia em janeiro.
“Mas por que em janeiro, Suzana? Quem em santa consciência se casa em janeiro em Forno Alegre?”
“Não implica, Gustavo, minha irmã só pode vir nas férias de verão, meus tios deixaram de ir para a praia para estarem aqui, tua família inteira gostou da ideia e o mais importante: eu já te falei isso mais de mil vezes, que tu só consegue férias em janeiro, pra que criar tanto drama?”
“Suzana, tu sabes como eu suo no verão, vou pingar durante toda a cerimônia.”
“Sabe que inventaram um aparelho muito bom que refresca o ambiente chamado AR-CONDICIONADO???”
Gustavo sabia que há muito perdera esse debate, assim como todos os outros, mas afinal ele sabia que tudo seria conforme a vontade de Suzana a partir do momento em que ele aceitou o pedido dela.
Sim, você entendeu muito bem. Suzana, em um belo dia de sol, convidou Gustavo para caminhar no parque. Ele gostava do Brique da Redenção, especialmente dos expositores de antiguidades, mas ela insistiu para que fossem para a orla do Guaíba e, como sempre, Gustavo cedeu às suas vontades. Suzana pediu para irem caminhar ao pôr do sol, o dia estava perfeito, com a quantidade de nuvens para não tapar o sol poente, mas o suficiente para emoldurar o céu com os matizes do vermelho.
Suzana deu uns passos à frente de Gustavo, se ajoelhou em pleno caminho, estendeu uma aliança e pediu Gustavo em casamento. Num repente três fotógrafos e videomakers surgiram do nada; estavam a postos para instagramizar o momento. Pego de supetão, Gustavo sorriu e aceitou o pedido e o anel, mas não imaginava que Suzana já tinha tudo programado, com data marcada e possíveis locais da festa. As fotos e vídeos não demoraram para se espalhar em todas as redes sociais e as congratulações não tardaram.
“E, Gustavo, vê se não te atrasa, preciso de ti aqui pelo menos cinco dias antes do casamento, pelamordedeus.”
“Sim, Su, estarei aí antes do que imagina, não te preocupa.”
Ao desligar o aplicativo de chamada de vídeo, Gustavo olhou para a escotilha e vislumbrou o deserto antártico e seus 45 graus abaixo de zero, o vento lá fora era cortante e, cada vez que um dos pesquisadores precisasse ir a campo, levava mais de 15 minutos para colocar todos os trajes e máscaras de proteção. Em um lugar como aquele, óculos especiais eram necessários, pois havia o perigo da cegueira da neve devido ao reflexo do sol.
Gustavo era pesquisador e trabalhava na estação brasileira na Antártica Comandante Ferraz, situada na Ilha Rei George, na Península Keller. Gustavo era glaciólogo e estudava a mudança climática através dos milênios observando camadas profundas de gelo retiradas com brocas e perfuradeiras. A cada metro perfurado, dezenas de anos de congelamento eram retirados do solo dando acesso ao gelo criado há milhares de anos, com seus micro-organismos congelados em um microcosmo de história da evolução da Terra.
Gustavo era fascinado pela Antártica, a última região inóspita do planeta. E Gustavo odiava calor.
Suzana viveria na beira da praia, de preferência com sol a pino e a pele sempre bronzeada e, apesar das melhores oportunidades em sua área se encontrarem nos veículos de comunicação de Rio e São Paulo, Suzana era muito apegada à sua família e não queria se afastar de todos. Quis o destino que fosse escalada para cobrir o Festival de Cinema de Gramado naquele ano, onde conhecera Gustavo em um inverno frio da serra gaúcha. Ela, crítica de cinema; ele, um dos personagens de um documentário sobre a estação brasileira no Polo Sul. Ao entrevistar Gustavo na coletiva de imprensa após a première do filme, Suzana ficou fascinada com sua paixão pela natureza e por cinema, pois Gustavo não apenas participou do documentário, mas também foi um dos roteiristas e buscou apoio de todas as maneiras para que o filme fosse finalizado. Naquele momento Suzana percebeu que ali estava o cara com quem ela queria passar o resto de sua vida. À noite, o Hotel Serra Azul recebia todos os artistas e produtores dos filmes onde a conversa e a bebida iam madrugada adentro. Suzana não tardou de encontrar Gustavo e passaram a noite conversando sobre filmes, arte e viagens.
Gustavo gostou de Suzana assim que a viu, tinham em comum a paixão pelo cinema e a vontade de conhecer vários lugares do mundo.
O trabalho de Gustavo o obrigava a ficar até seis meses longe de casa, por isso estava feliz com a mudança de projeto de pesquisa: iria ficar em Porto Alegre fazendo a análise mais detalhada de amostras que os colegas enviariam da base no continente gelado. Decidiu por esta mudança assim que os planos de casamento começaram. Não queria ficar tanto tempo longe de casa logo no início da vida de casados. Além disso, após dez anos trabalhando na Antártida, resolveu que era hora de deixar o trabalho de campo com os pesquisadores mais jovens, pois as condições de trabalho em baixas temperaturas produziam efeitos colaterais como artrites e reumatismo, e ele, apesar de jovem, já sentia os efeitos causados pelas condições extremas do clima. Sim, estava na hora.
A Grazi, mãe da Su, muito antes do solicitado pela filha, praticamente se mudou para a casa de Suzana e estava auxiliando nos preparativos do casamento. Começou separando os convidados nas mesas, e isso não era uma tarefa fácil, pois muitos parentes não se davam bem desde a época das eleições, alguns ainda não aceitaram a divisão de herança do patriarca que os deixara há anos e qualquer palavra meio torta já era motivo para acaloradas discussões. Sim, a distribuição dos convidados nas mesas do salão era a mais árdua das tarefas. E não cansava de repetir o quanto Gustavo estava errado em não estar ali para ajudar.
“Que tipo de noivo está longe em um período tão importante da vida?”
“Mãe, você sabe que o Gustavo trabalha com pesquisa, e olha o que ele está fazendo! Está mudando para cá para não ter que viajar tanto.”
“É, mas hoje ele não está aqui.”
Suzana sabia que não ia adiantar brigar com sua mãe. Grazi implicava com Gustavo desde o primeiro dia, e isso não ia mudar após o casamento.
Faltavam dez dias para a cerimônia. Gustavo, ao analisar as condições meteorológicas, decidiu sair dois dias antes da base e aproveitar a carona em um navio quebra-gelo argentino a caminho da Terra do Fogo. Finalizou seus relatórios, definiu os cronogramas das próximas coletas e resolveu sair para uma última caminhada no continente gelado. O silêncio e a imensidão o fascinavam, e ele sabia que dificilmente iria voltar para o trabalho de campo. Caminhar nos campos gelados trazia uma paz, imensidão e silêncio.
Gustavo era avesso a multidões e se preparava psicologicamente para enfrentar os quase 400 convidados do casamento. Como Suzana conhecia tanta gente? E por que era tão importante convidar todas aquelas pessoas? Por ele teriam sido 40 pessoas próximas em uma cerimônia discreta, mas resolveu não discutir e aceitou de bom grado a oferta do sogro de bancar todos os custos. Ao caminhar devagar no gelo, riu ao lembrar da reunião de noivos na igreja, de como o padre ressaltou a importância de manter a castidade até o casamento. Ele tinha verdadeira aversão a todos estes sacramentos e rituais, mas sabia o quanto eram importantes para sua noiva e também para sua mãe. Maitê não admitiria a hipótese de não acompanhar seu único filho ao altar, isto não era passível de discussão. No dia de escolher seu fraque para a cerimônia, traje que até aquele dia ele não imaginava existir, sua esposa, sua mãe e sua sogra foram juntas à loja e se certificaram que ele escolheria o traje perfeito, com aquela gravata inglesa metida a besta e o colete com o bolso para o relógio antigo redondo que um dia encontrara nas gavetas de seu avô. Gustavo sentia-se ridículo naquela fantasia e sabia que ia se sentir mal, por isso repetia para si: é só por uma noite, só por uma noite. E naquela manhã fria ele queria curtir seus últimos momentos naquela região deserta e selvagem que ele aprendera a amar.
A 3.600 km dali, Suzana olhava concentrada para os guardanapos de linho e já não tinha certeza que salmão fora a escolha certa de cor, mas o que ela sabia diante da expertise dos cerimonialistas? Cada sugestão que ela dava era recebida com uma careta ou um leve arquear de sobrancelhas. Concluiu que, se contratou profissionais para decorar a igreja e o salão, deveria deixar a cargo deles as decisões finais, mas rosas brancas no corredor da igreja eram inegociáveis e, apesar da resistência dos especialistas em decoração e design, conseguiu impor sua vontade. Entrou na sala e lá estava Grazi. Sua mãe continuava na batalha para colocar parentes e amigos belicosos em mesas diferentes, tudo para evitar que os garfos e facas fossem usados como armas. Nesse momento lembrou da reunião que ela e Gustavo tiveram com os músicos para definir a playlist da festa. Os dois concordaram em ter uma banda com música ao vivo e pesquisaram bastante antes de tomar uma decisão. Optaram por um conjunto completo, com metais e cordas.
“Su, vamos começar com New York, New York?”
“Boa, Gus, assim damos uma chance para nossos pais, avós e bisavós dançarem uma música, quem sabe na sequência não toca La Barca também, seguida de Besame Mucho?”
Riram muito juntos e passaram uma tarde divertida escolhendo as músicas que fizeram parte de suas vidas: Guns, Rolling Stones, Fábio Júnior, Roupa Nova, não esquecendo de Legião Urbana e Paralamas. Foi o último momento de diversão em muito tempo.
Suzana se sentiu sobrecarregada ao assumir diversas tarefas na preparação do casamento, tirou duas semanas de férias antes da data e usariam as outras duas semanas na lua de mel. A escolha do local não foi fácil, ela queria ir para a praia, ele preferia a serra. Sabiam que ambos os lugares estariam lotados nesta época do ano e juntos chegaram à conclusão que a lua de mel em uma estância antiga no interior seria o ideal, passeios a cavalo, um barquinho no meio do lago, o pôr do sol no campo... Sim, seria perfeito. E os dois precisavam muito de um momento só deles.
Gustavo se despediu de seus colegas da estação e prometeu mandar fotos da cerimônia. Naquele momento, pesquisadores de seis países faziam parte do consórcio internacional de pesquisas glaciais na estação brasileira, a convivência com pessoas das mais diversas culturas era um dos bons motivos para Gustavo gostar tanto do período que ficava na estação de pesquisa. Ele sentiria falta de tudo isso.
Ao subir na carona do snowmobile que o levaria até o porto, ou melhor, uma baía que possibilitava uma ancoragem segura para os navios, Gustavo não fazia ideia de tudo o que ainda teria que passar na volta pra casa. Na verdade, conforme os dias passavam, curtia cada vez mais a ideia do casamento. Ele e Suzana optaram por não viver juntos até se casarem e também decidiram não comprar um lugar novo, então resolveram reformar a casa dela para morarem.
Uma casa pequena que aos poucos foi ficando com a cara dos dois, simples, minimalista e prática como deveria ser. Uma casa de dois quartos, onde transformaram um cômodo em um escritório, na sala deram prioridade para uma grande tv com um sistema de som estilo home theater para juntos reverem os clássicos que tanto amavam.
Gustavo estava tão absorto em seus pensamentos que não percebeu o problema que se anunciava ao chegar perto da baía onde a embarcação se encontrava. Entendeu a gravidade da situação quando o snowmobile chegou ao lado do navio argentino El Capitan. O certo seria pegar uma lancha e embarcar no navio no meio da bacia, mas praticamente toda a bacia estava congelada. Apesar de ser um navio corta-gelo, era necessário um mínimo de espaço navegável para ter força de romper a barreira que, apesar de não ser muito grossa, o impedia de sair do lugar.
O processo normal seria quebrar o gelo com máquinas perfuratrizes e a previsão de saída era de dois dias, visto que a previsão indicava elevação de temperatura para os próximos dias.
Gustavo retornou para a base e resolveu não falar nada para Suzana por enquanto, já que ele havia adiantado seu retorno, ainda estava tudo dentro do planejado. Ao chegar na base, explicou para seus colegas o acontecido e se recolheu aos seus antigos aposentos. Ao deitar, se lembrou do último compromisso que ele e Suzana tiveram antes da viagem: o ensaio da cerimônia.
Naquela tarde de um sábado de novembro, pais e padrinhos, além dos noivos, é claro, se reuniram na Igreja Santa Terezinha, em frente à Redenção, para o ensaio da cerimônia, afinal tudo tinha que ser perfeito.
Após uma breve palestra do padre a respeito novamente das virtudes e castidades do casamento, as madrinhas e padrinhos entraram na igreja, o clima era de descontração apesar dos avisos constantes do padre para todos levarem aquele momento a sério. Após a entrada dos padrinhos, Gustavo parou no início do tapete vermelho com sua mãe e respirou fundo. Mesmo sendo um ensaio, ele estava muito nervoso, sua mãe lhe disse para fazer uma contagem mental e seguir em frente, e foi isso exatamente o que ele fez. Em meio a estas boas lembranças, Gustavo se preparou para dormir torcendo para que o tempo melhorasse.
Infelizmente não foi o que aconteceu. Nos dois dias seguintes, o gelo não diminuiu de espessura sendo impossível liberar o navio argentino. Apesar do esforço das perfuratrizes e, mais grave ainda, o navio brasileiro não conseguiu chegar até a baía, o mesmo atracou perto da base russa, a cento e vinte quilômetros do local usual de atracamento. Fazer uma viagem tão longa de snowmobile era arriscado, os ventos cortantes e a irregularidade do terreno tornavam a viagem bastante perigosa.
Suzana estava surtando. Faltando cinco dias para o casamento, os preparativos estavam a mil e nada de Gustavo chegar, sua mãe no seu ouvido reclamando da indiferença do noivo e Suzana ouvindo quieta, pois não queria explodir nestes dias. Grazi queria trazer os familiares mais próximos para ficarem na casa da filha, mas quanto a isso ela foi firme e não permitiu, afirmando que a casa era pequena e precisava de paz.
Conseguiu organizar todos os parentes no mesmo hotel, aliás, enviou o contato para sua irmã e pediu que ela cuidasse de tudo, só não queria ver ninguém antes da cerimônia. Corrigindo, quatro dias antes do casamento ela se reuniria com irmãs e amigas para a despedida de solteira. Seria em um bar fechado para elas e o combinado era música, bebida e muitas risadas; ela não curtia a ideia de dançarinos disfarçados de policiais que arrancavam a roupa do próprio corpo, mas tinha certeza que alguma coisa suas amigas iriam aprontar, então resolveu relaxar e deixar a festa rolar.
Gustavo estava pensando em uma maneira de contar para Suzana sobre o atraso — atraso este que nem ele sabia de quanto tempo seria — quando ouviu um forte ronco de motor no lado de fora da estação. Comovidos com seu desespero, os pesquisadores seus amigos solicitaram aos colegas da estação sueca, que ficava a cerca de 40 quilômetros, um veículo adaptado para grandes distâncias, veículo este que a estação brasileira não dispunha e solicitava aos europeus em situações de emergência. Pois bem, para seus colegas e amigos e os pesquisadores suecos, ali estava uma emergência bastante justificável.
Abraçou a todos, reforçou o compromisso de fotos e vídeos do casamento e embarcou no veículo sueco rumo a um porto que estivesse liberado para sair. Antes de embarcar no veículo, Gustavo enviou uma mensagem tranquilizando Su e uma foto em meio à imensidão gelada.
Suzana começou a se arrepender de ter contratado os especialistas em casamentos, ela queria fazer parte de todo o processo, pois este era o seu sonho, e no seu sonho as coisas seriam exatamente do jeitinho que ela queria que fossem. Bateu pé novamente e não abriu mão dos arranjos de orquídeas no centro das mesas, arranjos baixos para que todos os convidados sentados em cada mesa redonda pudessem se enxergar e conversar. A banda deveria estar em um lugar de destaque no salão. Ela pensou nisso quando escolheu o maior salão do clube, mas as “especialistas” achavam que a banda e o espaço de dança deveriam ficar ao fundo, mas o que sabiam elas sobre o sonho de Suzana? Estava por um fio de despedir aquela equipe, mas já havia pago grande parte dos serviços dos profissionais e o contrato era bastante severo quanto à desistência.
Gustavo mal podia acreditar que estava chegando no continente sul-americano. A viagem da Antárdida ao ponto mais austral da Argentina havia sido tensa e, devido à baixa velocidade que o navio percorreu todo o percurso, fez com que a embarcação levasse o triplo do tempo normal para fazer o trajeto. Gigantescos blocos de gelo descolados de geleiras milenares boiavam no entorno do navio durante grande parte do trajeto. Esses blocos eram anômalos àquela época do ano e isso o preocupava, tornando a sua teoria sobre o aquecimento do planeta bastante real. Pegaria um voo em um pequeno avião com destino a Buenos Aires, de onde partiria finalmente para Porto Alegre.
A viagem lenta do navio e as demoras nas conexões lhe preocupavam, pois chegaria na véspera do dia do casamento, se tudo corresse dentro da normalidade, sem atrasos nos horários dos voos. Gustavo aguardava o primeiro embarque quando recebeu fotos de sua despedida de solteiro. Apesar de não chegar a tempo, seus amigos resolveram celebrar. Levaram uma boneca inflável e colaram uma foto de seu rosto na boneca. Ele riu muito e ficou feliz sabendo que pelo menos alguém estava se divertindo. Sabia que precisava ligar para Su e temia este momento. Resolveu não adiar o inevitável. Nos últimos dias, devido à instabilidade do sinal na viagem de navio, ele havia enviado apenas mensagens e fotos.
Ligou por chamada de vídeo.
“Oi, Su, como estão as coisas?”
“Oi, Gustavo, que bom te ver! Por aqui tudo bem, organizando os últimos preparativos, tudo sob controle, tua viagem deve estar muito cansativa, né?”
Gustavo, que estava se preparando para o confronto, ficou impressionado com a calma e amorosidade de Suzana, mas também lembrou que Suzana sempre demonstrava calma e não perdia o controle em momentos de pressão, por que seria diferente agora? Nesse momento, lembrou-se dos motivos de amar tanto esta mulher. Ela era a base emocional do casal e muitas vezes segurou a barra em momentos difíceis.
“Oi, Su, sim, está cansativa, mas estou muito aliviado que apesar do atraso vou conseguir chegar a tempo para casar contigo.”
“Gustavo, tu não existe, te amo!”
“Te amo, minha Su.”
Suzana desligou aliviada, estava extenuada com a função do casamento, mas jamais iria brigar com Gustavo por algo que não foi culpa dele, ainda mais quando colegas de Gustavo enviaram uma foto do quarto dele na estação de pesquisa. No centro da parede, um calendário onde Gustavo marcou os dias que faltavam para o casamento e no destaque ela percebeu que Gus havia tentado sair dois dias antes da base como precaução para não se atrasar. Mas ele finalmente estava a caminho.
O primeiro voo transcorreu sem problemas, a vantagem destes pequenos aviões é que voam a baixa altitude e assim pode apreciar uma bela vista de boa parte do território argentino. Ao chegar em Buenos Aires, recebeu a notícia de que teriam seis horas de atraso, chegaria apenas na madrugada do dia de seu casamento. Cogitou em ir para casa de carro, seriam apenas dez horas, mas decidiu que seria muito cansativo e resolveu esperar.
Era noite, Suzana ia casar no dia seguinte e ficou feliz de ter aceitado a sugestão da cerimonialista de dormir em um hotel onde se encontrava o spa que ela passaria o dia da noiva. Um dia de paz, sem pais e parentes por perto, só veria a todos na cerimônia. Cansada, tomou um banho e dormiu cedo.
Gustavo só relaxou quando ocupou seu assento no Boeing da Aerolineas Argentinas. Em pouco mais de uma hora, estaria em casa, poderia dormir e se preparar para o casamento. Por algum tipo de superstição, ele e Suzana só conversaram por mensagem na véspera; se veriam em breve.
A caminhada até o altar foi mais tranquila do que Gustavo esperava que fosse, tudo estava lindo e ele estava muito feliz com todas aquelas pessoas presentes em meio ao verão, que abriram mão de férias para estarem lá por eles. Se um dia teve dúvidas sobre o casamento, agora só existiam certezas.
Mas nada o havia preparado para o momento em que viu Suzana pronta para entrar na igreja com seu pai. Ela estava maravilhosa.
Suzana parou no início do tapete vermelho para ajeitarem seu véu e a cauda do vestido. A última missão de Gustavo durara três meses e era a primeira vez que o via desde a viagem. Ele estava mais magro, levemente abatido, mas com o sorriso que a lembrava por que o amava tanto.
Seu pai deu um leve aperto de estímulo em seu braço e, antes do primeiro passo, ela lembrou da dica do noivo para não ficar nervosa.
Ao iniciar sua caminhada para o altar, olhou nos olhos de Gustavo e, em silêncio, começou a contar:
1, 2, 3...
Navegantes
Gilmar Caldas Peres
— Levanta, filha. Vamos na procissão dos Navegantes. Anda, vamos lá. Deixa de moleza. Põe uma roupa adequada e vamos à procissão.
— Não enche, mãe. Tá louca? Eu não vou a procissão nenhuma. Tá um calor infernal. Me deixa dormir que eu cheguei tarde.
— É por isso mesmo. Vamos lá rezar por ti. Chega dessa vida. Vamos rezar pra conseguir um bom casamento e sossegar esse pito. Eu vi a hora que tu chegou em casa. No mínimo, bebeu e sei lá mais o quê. Não me faz perder a paciência contigo.
— Não vou. Não sou mais criança, mãe. Tá muito quente. Tô cansada e vou ficar em casa. — A filha se acomodou na cama, mexendo o travesseiro.
— Priscila Maria, se tu não te levantares agora eu vou aí te derrubar dessa cama, te puxar até a porta e te arrastar pelos cabelos como eu nunca fiz antes. Tu precisas mudar essa vida de redes sociais, festas, namoricos sem compromisso e te endireitar. Vamos! Agora! – A mãe sempre caprichava na fala quando estava brava.
A avó de Priscila apareceu assustada na sala e perguntou o que estava acontecendo para a gritaria àquela hora da manhã.
— Essa tua neta, mãe. Só quer saber de festa, internet e nada de compromisso sério. Passou da idade de tomar juízo. Ela vai na procissão hoje comigo. Não tem “querer”. Vai por bem ou por mal.
— Calma, filha, também não exagera. Ela é uma boa moça.
— Nesta idade, eu trabalhava pesado, mesmo com ela pequena. Sustentava a casa sozinha e ainda me sobrava tempo. Essa aí só quer tirar foto fazendo bico, mostrando o corpo, de prato de comida ou de praia com frase bonita no fundo. Vai tomar jeito! Tá se encaminhando pros trinta anos e nem o curso técnico de radiologia terminou. E olha que eu me esforcei para ela estudar. Trabalhei em dois empregos por um bom tempo. Não casei de novo depois que o pai dela foi embora, mas ela não valoriza. E tu sabe disso, mãe. Não incentiva essa guria a ficar nessa vida – discursou Sirlei de modo que a filha ouvisse do quarto.
A avó ficou quieta, foi ao banheiro e disse que também iria à procissão. Ouvindo o discurso da mãe na sala, Priscila se enfureceu, mas achou por bem lhe acompanhar, mesmo com aquele calor e um pouco de ressaca da noite anterior. Embora não tivesse bebido muito, sentia-se enjoada.
— Tá bem, eu vou. Mas que saco! Eu não fiz nada de errado — gritou ela do quarto e chutando o lençol que a cobria. — Droga, onde tá meu chinelo? O que eu vou vestir com esse calorão? — resmungou.
Priscila se arrumou rápido. Colocou uma bermuda jeans, uma camiseta leve e calçou um tênis confortável. Passou na frente do espelho e estava pronta. Com o calor prometido, não adiantaria se maquiar. Apenas um perfume suave e algo para prender o cabelo volumoso que ela cuidava com esmero e que grudaria nos ombros com o suor.
Seu humor estava terrível e só não brigou porque sabia que a outra estava nos seus raros dias de fúria. Normalmente carinhosa e delicada, quando a mãe colocava alguma coisa na cabeça, ninguém a segurava. Além disso, ela tinha planos para o carnaval e temia que ela pudesse frustrá-los. Poderia precisar de algum dinheiro emprestado e não receber a ajuda.
Chegaram na Igreja Nossa Senhora da Conceição bem na hora. A rua Vigário José Inácio, no centro histórico de Porto Alegre, estava lotada de fiéis e o grupo principal estava parado, aguardando a autorização para o início da procissão. Avó, mãe e filha chegaram com sentimentos diferentes. A mais velha começou a temer pelo calor e o longo percurso. Não queria estragar o dia das demais. A do meio estava convicta de sua fé e da necessidade de seguir sua santa protetora até o destino e a mais jovem lembrava de sua cama e do ar-condicionado, temendo também pela resistência de suas companheiras.
A avó conhecia todos os cânticos e as orações. A do meio, a maioria. A mais nova, apenas alguns, tímida em se expor. As três mulheres se posicionavam perto da santa porque a mais velha não conseguia manter o ritmo por todo o trajeto; pelo menos em algum momento estaria próxima. O sol castigava os fiéis impiedosamente. A água, escassa e morna, mantinha a energia da caminhada.
O peso e a maneira de colocar o andor sobre os ombros incomodava os carregadores que revezavam-se para não perderem o ritmo e não se desgastarem demais. Além disso, com vontade de demonstrar a fé, elevavam o máximo que podiam para que ela pudesse vigiar seus devotos e ouvir suas preces. Eram homens de todas as idades e portes físicos. Um deles era alto, com ombros largos, pernas compridas e olhar compenetrado. O único que se mantinha firme desde o início. Depois de um bom tempo, ele cedeu o lugar para outro rapaz e se aproximou das três mulheres sem ser percebido.
Formigavam as pernas da avó, faltava-lhe o ar e o suor lhe grudava a roupa no corpo. A sombrinha amenizava um pouco o sol, não o suficiente. Sirlei olhou para a mãe e percebeu que ela não aguentaria todo o percurso de seis quilômetros. Temeu por vê-la mal e se arrependeu de ter pensado mais na fé do que na resistência da mais velha.
Demorou um pouco para que Priscila percebesse, porque caminhava com pensamentos em outro lugar. Acompanhava a procissão para não se incomodar e preferia que ninguém a reconhecesse. Temia ser vista como uma carola. Queria estar na praia, tomando água de coco ou caipirinha. Especialmente quando sentiu o cheiro de protetor solar que alguém espalhou por perto. No entanto, ao ver a avó parar e colocar a mão no meio do peito, correu ao seu amparo e ajudou a mãe a segurá-la.
— O que houve, vó? Tá te sentindo mal?
— Cansaço, filha. Só isso. Tá muito quente.
— Vem, mãe, vamos sair do caminho, as pessoas vão nos derrubar — disse Sirlei.
— Vamos ali pra calçada — emendou Priscila, amparando a avó pelo braço direito e com a mão nas costas da idosa, enquanto a mãe fazia o mesmo pelo outro lado.
Ao subir o meio-fio, buscando afastar-se da procissão e um abrigo à sombra de uma marquise, a avó se desequilibrou e caiu para frente, esfolando as mãos e os joelhos com pele fina e sensível de uma pessoa idosa. Priscila temeu, achando que a velha estava infartando e Sirlei procurou falar com a mãe que não respondeu bem, com uma visão turva e dor aguda na cabeça. Elas não sabiam o que fazer até surgir uma alma caridosa.
— Vocês estão bem? Deixa que eu ajudo — disse o rapaz que havia largado o andor há pouco. — A senhora consegue me ouvir? Qual é o seu nome?
A velha não respondeu de pronto. Apenas resmungou algumas coisas que não entenderam.
— Vó, a senhora tá bem? — gritou Priscila.
— Responde, mãe. Tá ouvindo a gente? O que tá sentindo? — reforçou Sirlei.
— Tô bem. Tô bem. Só tô cansada. Quero ir para casa — disse a avó.
— Deixe que eu ajudo. Eu vou lhe levar até uma sombra mais confortável, está bem? — disse o rapaz.
— Não precisa, meu filho, eu consigo caminhar. — Ela tentou se levantar, mas não teve forças.
O rapaz, percebendo que poderiam ser pisoteados pela multidão próxima, pegou a idosa no colo com facilidade e a levou para uma sombra distante da procissão, colocando-a sentada. As mulheres acompanharam os dois e, assim que ele a largou com delicadeza em uma cadeira, tentaram refrescá-la com água e a abanando com um pedaço de papelão e folhinhas de cânticos distribuídos pela Igreja, jogando um vento morno e escasso em sua direção.
Não havia dúvidas que Dona Isa não conseguiria seguir adiante. Talvez precisasse ir a um plantão médico. O rapaz verificou o pulso, olhou os olhos e fez algumas perguntas básicas para ela. Recebeu respostas satisfatórias e se dirigiu a Sirlei:
— Acho que ela precisa ir para casa descansar. Não aguentará o restante da procissão. Deve ser o calor e alguma queda de pressão.
— Ah, meu filho. Muito obrigado — respondeu Sirlei. — Tu és médico?
— Não, senhora. Mas eu fiz curso de primeiros socorros. Acho que seria bom procurar por um, caso ela não se recupere logo.
— Eu já estou bem. Foi só um mal-estar. É o calor — interveio Dona Isa.
— Acho melhor irmos para casa, mãe. A vó não vai aguentar — disse Pri.
— Claro. Eu vou com ela e tu segues a procissão — disse Sirlei arregalando os olhos em direção ao rapaz sem que ele percebesse e tentando caprichar na fala.
Pri entendeu o recado, mas fez cara feia. Odiava quando a mãe tentava lhe arranjar namorado. Ainda assim, deu uma boa observada nele. Não achou o rosto bonito; o corpo, sim. Longe de ser um modelo estourado nas redes sociais, mas impressionava pela demonstração de força sem musculatura abundante. Procurou tatuagens e adereços; não encontrou. Imaginou-o vestido com outras roupas, que não o azul e branco de quem faz parte da equipe que carrega a santa.
Dona Isa se levantou.
— Está bem, vamos para casa. Acho que vou fazer um fiasco maior se ficar aqui.
— Pri, tu continuas na procissão e nós vamos pegar um táxi. Tá bem mesmo, mãe?
— Sim. Tô bem. Vamos embora logo.
— Eu vou com vocês. Não vou ficar sozinha aqui nesse calorão.
— Fica aqui, guria. Tu vais nos representar perante a santa. Não teima.
— Não vou.
— Fica, filha. Faz a vontade da tua mãe. Não precisa se preocupar comigo. Eu já tô bem — disse a avó.
— Bom, se vocês me dão licença, preciso voltar para procissão. — Antes de sair, o rapaz fuzilou Pri com um olhar desconcertante.
— Tá bem, eu fico. Mas se a vó não melhorar me avisa e corre com ela pro hospital, mãe.
— Claro, filha. Tá achando que eu sou o quê?
As duas mais velhas agradeceram ao rapaz com palavras gentis e carinhosas. Pri apenas retribuiu com um olhar tímido e expressões protocolares. Em seguida, acompanhado pela vista das três, ele alcançou o andor e assumiu o lugar de um carregador cansado, seguindo a procissão com vigor. Elas lembraram que ele não tinha se apresentado.
— Filha, agradeça melhor aquele rapaz. Ele foi tão gentil. Nem perguntei o nome dele.
— Para com isso. Eu não vou correr atrás dele. Nem achei interessante.
— Bom, vamos embora, mãe. A Priscila Maria vai nos representar perante a santa. Depois vai direto pra casa. Preciso ter uma boa conversa contigo hoje.
Após as duas dobrarem a esquina e entrarem em um táxi, Pri seguiu a procissão se odiando pelas circunstâncias. Poderia estar em seu ar-condicionado, falando com as amigas e combinando o que fariam no feriado. Talvez um “chimas” num parque ou o pôr do sol na orla do Guaíba. Precisavam combinar como seria o carnaval. Uma delas lhe convidou para passarem na praia, mas ainda era uma coisa vaga. Precisava confirmar porque faltavam poucos dias e teria que pedir um pequeno empréstimo à mãe.
A procissão seguia com os cânticos e orações sob a regência dos religiosos. Em especial, pelo Bispo que se mantinha firme à frente do andor, ditando o ritmo da caminhada. Priscila percebeu que seus passos estavam em sintonia e o olhar, mesmo a uns quarenta metros, buscava o rapaz que havia se prontificado a ajudar sua avó. Qual seria o nome dele? Deveria ser um pouco mais velho do que ela. Tinha cabelo bem aparado e o rosto liso. Não reparou aliança ou qualquer coisa que identificasse outra pessoa em sua vida.
Pri sentiu-se sem sorte ao lembrar dos outros namorados. Ela não engatava relacionamentos longos e costumava dizer que tinha dedo podre. Nos últimos tempos, preferiu aceitar o que lhe parecia ser o destino e não tinha esperanças de encontrar nada semelhante a um príncipe encantado, aparentando uma liberdade e segurança maior do que desejava, mantendo nas redes sociais um perfil alegre, independente e de quem aproveitava a vida. De longe, as pessoas não conheciam a fragilidade de seus sentimentos.
Na fase final da procissão, quando chegavam à Igreja Nossa Senhora dos Navegantes, uma multidão aguardava pelo cortejo soltando foguetes e fazendo coro aos cânticos, com as pessoas jogando rosas para Nossa Senhora dos Navegantes, caindo algumas pelo caminho. Com isso, Pri foi se afastando e não conseguiu acompanhar dentro do templo lotado. Aguardou o Bispo fazer uma última benção na porta de entrada, Nossa Senhora dos Navegantes sumir de seus olhos, carregada pelo corredor principal, e decidiu ir embora. Cumprira sua parte e deu-se conta que com uma certa leveza.
Segundo as mensagens em seu telefone celular, avó e mãe chegaram bem em casa. Ela ainda procurou pelo rapaz que as ajudou com a intenção de agradecê-lo mais uma vez. Mas percebeu que ele se encontrava dentro da igreja porque o viu carregando o andor até lá. Demoraria muito para que ele saísse e, mesmo assim, poderia não encontrá-lo na multidão. Decidiu buscar um transporte e foi para casa descansar.
— Então, filha, como foi a procissão? — indagou Sirlei logo na chegada de Pri.
— Normal, mãe. Quase derreti meus pés naquele asfalto quente. Pelo menos peguei uma cor. E a vó, como tá?
— Como tu és descrente, filha! Eu não te criei assim. Tua vó tá bem, foi só um susto.
— Ótimo, mãe. Me deixe descansar um pouco, vai?
— E aquele rapaz? Falou com ele de novo?
— Não, mãe. Não falei. Para de querer me casar com qualquer um que encontre na rua.
— Parecia ser um belo partido. Não achou, mãe?
— Quê?
— Nada, vó. A mãe tá viajando.
Elas ainda retrucaram algumas palavras, mas Pri tomou um banho refrescante e se fechou no quarto com o ar-condicionado em vinte graus e fugindo da conversa que a mãe havia programado. Sem dar-se conta, buscou os pensamentos no rapaz. Agarrou-se a um travesseiro e cochilou pensando nele.
***
Algumas semanas depois, no sábado de carnaval, Pri estava na praia com mais duas amigas. Uma era a anfitriã, que terminara com o namorado havia poucos dias, oferecendo o apartamento dos pais que estavam em viagem pelo exterior. Embora o dia estivesse quente, o mar ressacado não apresentava condições propícias para banho. Por isso, a praia não lotava, mas havia muita gente no curto espaço de areia que o avanço do mar tomava para si.
— “Miga”, segura a bebida. É cedo ainda — disse a outra para a dona do apartamento no qual passariam os quatro dias.
— Eu vou beber. Aposto que aquele desgraçado deve estar com alguma baranga, surfando em Garopaba e fumando com aqueles amigos idiotas.
— Tá certo, “miga”. Mas ela tem razão. Tu vai passar mal e à noite não vai conseguir fazer nada — reforçou Pri, também preocupada.
— O que foi? Até parece que vocês nunca se embebedaram. Não tô nem aí. Querem olhar pra minha bunda, podem olhar — falou a moça enrolando a língua e olhando para uma turma de homens que estava perto. — Vou na água.
— Não, Rô. Tá perigoso. Fica aqui.
Antes de Pri terminar a frase, a amiga correu para o mar e tombou na primeira onda mais forte. Quando tentou se levantar coberta pelas algas marrons, caiu novamente e a força do mar a sugou alguns metros. Ela tentou se erguer mais uma vez, mas caiu em um buraco que a força da água causou e foi puxada para o fundo mais um pouco. Com o susto, levantou o braço e as pessoas na praia se preocuparam. Estava se afogando. As duas amigas correram em sua direção, mas ela se afastava cada vez mais com o repuxo da água e ambas começaram a gritar. As pessoas à volta reforçavam o pedido de ajuda, mas não havia ninguém mais ao fundo que pudesse socorrê-la pelas condições daquele dia. O desespero tomou de Pri e da outra companheira na areia.
Logo em seguida, dois salva-vidas surgiram correndo com suas boias e entraram na água. Um terceiro saltou de sua guarita sobre a areia fofa, pegou uma boia laranja que repousava por ali, correu até a água bater acima dos joelhos e nadou em direção a Rô, furando ondas e ultrapassando seus colegas. Ele agarrou a moça pelas costas, nadou um pouco para o lado buscando fugir do repuxo e, em seguida, estavam com água pela cintura, para alívio geral.
Rô se agarrou nos ombros largos do seu socorrista cobrindo o rosto com vergonha, escondendo o choro e a tremedeira. Os outros ajudaram-na a sair da água e ficaram na areia observando seu estado de saúde. Ela se dizia bem, mas em seguida vomitou a água salgada e três caipirinhas de vodka.
Passado o susto inicial, Pri reconheceu o homem que salvou sua amiga. Era o mesmo que acudira sua avó na procissão. O porte físico, o sorriso e o olhar eram inconfundíveis.
— Nossa, muito obrigada de novo. Que coincidência. Não sei se tu te lembras, mas tu ajudaste minha avó na procissão dos Navegantes.
O rapaz olhou com interesse para Pri e abriu um sorriso brilhante.
— Olha só, mas que coincidência. Tu és a Pri, não é?
— Sim, como sabes meu nome? — perguntou ela tentando caprichar na fala como sua mãe fazia em circunstâncias especiais.
— Acho que ouvi tua mãe te chamar naquele dia.
Rô teve que ouvir um sermão dos outros salva-vidas que ajudaram no salvamento. Foi quando percebeu o quão alcoolizada estava e se envergonhou pelo contexto. Assim que foi possível, juntaram as coisas para irem embora. Mas antes de saírem, Pri perguntou:
— E teu nome, posso saber?
— Tiago.
— Prazer, Tiago. Obrigada mais uma vez — disse Pri tapando o sol com a mão e fazendo uma careta para poder enxergá-lo um pouco melhor.
— Não precisa agradecer. É meu trabalho. Pelo menos nesse verão. Passei num concurso para bombeiro e me candidatei para atuar aqui nesses meses, antes de me chamarem.
Quando elas começaram a deixar a praia, Tiago se aproximou novamente.
— O que tu vais fazer hoje à noite? Tens compromisso? — Também tentando falar corretamente.
— Nada especial. Vou ajudar a Rô com a ressaca e ver o que vai rolar.
— O que acha da gente se encontrar? — convidou Tiago. — Topa?
— Topo — respondeu Pri com as bochechas coradas pelo sol e o calor que lhe subia.
Um nordestão correu a praia e arrepiou os pelos descoloridos dela. Pri tapou com uma canga o corpo rígido, de pernas bem torneadas, peitos médios e cabelos esvoaçantes. O sacrifício na academia lhe recompensava naquele momento sob o olhar interessado e gentil de Tiago. Ela calçou os chinelos de dedo, pegou suas coisas e deu uma última olhada para o rapaz que acompanhou todos os seus movimentos com atenção e respeito.
***
Um ano havia passado. O dia quente prometia uma tempestade ao entardecer. As nuvens chegavam rápido, escurecendo o céu, distribuindo relâmpagos e trovoadas. Não tardaria para o vento trazer a chuva. Tiago suava no altar, vestido com um terno alugado azul-claro e camisa branca. As cores de Nossa Senhora dos Navegantes. Sirlei corria de um lado para o outro da igreja, preocupada com a mãe e os convidados, passando orientações finais para o fotógrafo. A porta se abriu e Priscila entrou na igreja carregando flores, com um vestido de noiva sóbrio e de bom gosto. Preferiu entrar sozinha. Caminhava com alegria no rosto e senhora do seu destino. Até chegar ao encontro do noivo que não lhe desviava o olhar.
As duas amigas da praia eram suas madrinhas e sorriam com alegria ao seu encontro. Pri se emocionou quando viu a mãe e a avó no primeiro banco com as maquiagens borradas pelas lágrimas. Naquele momento, sentiu a barriga se movimentar e acariciou o fruto que carregava no ventre por quase seis meses. Tiago também a tocou e sentiu o movimento que o fez brilhar os olhos ainda mais. Eles se viraram e encontraram o padre sorridente, que citava o amor e os milagres da padroeira. O casamento foi rápido. Logo, estavam recebendo os cumprimentos e se dirigindo para um pequeno salão de festas onde recepcionariam os pouco mais de cinquenta convidados.
Antes de saírem, Pri tinha uma pergunta para a mãe:
— Mãe, de onde tu conheces o tio do Tiago pra ele ter te cumprimentado daquele jeito?
— Priscila Maria, agora não é hora nem lugar para falarmos sobre isso. Vamos logo para a festa. Hoje, ao contrário de sempre, tu terás que me controlar. – As duas riram como poucas vezes fizeram juntas.